Coluna CNA: Renata Müller





A Autora:


Renata Müller Cardozo é bacharel em Psicologia pela Universidade Regional de Blumenau. Paranaense, atualmente reside com seu marido em Florianópolis, Santa Catarina, onde é servidora pública.






Trecho do livro "Antes de Você Chegar"




1. MEG 
Tinha alguém me seguindo. Não sei quando foi que eu percebi isso, mas a sensação de alguém me observando estava lá. Minha colega, Samantha – que era chegada nessas coisas de sobrenatural, percepção extrassensorial e coisas genéricas de séries de TV – havia dito que ou eu estava sendo perseguida, ou eu “era objeto de possessão demoníaca”. Como eu não acreditava em fantasmas ou demônios e não me achava interessante o bastante para algum psicopata tomar nota, eu deveria estar simplesmente maluca. 

Poderia ser só uma impressão recorrente. Ou talvez o Pedro houvesse tido uma recaída. Só que ele estava no trabalho naquela hora e eu sabia que ele não andava cabulando o serviço porque eu revistava a carteira dele. 

Na hora em que eu saí do serviço, estava ventando. O outono havia chegado, mas sempre havia vento naquela bendita cidade. Estava atravessando a rua no semáforo e o vento bateu em mim com tanta força que quase me fez perder o equilíbrio. Meu cabelo voou em todas as direções, feito uma medusa. Meu elástico tinha caído no chão. Baixei para pegar e depois tive que correr para atravessar antes de o sinal abrir para os carros. 

Foi quando eu parei na calçada para amarrar o cabelo, que vi a caminhonete. Era como em um daqueles filmes em que a pessoa que está para morrer vê a vida toda passar diante dos olhos. Exceto que eu não estava morrendo, mas eu me lembrava de já haver visto aquela caminhonete mais de uma vez. 

Tentei pegar o número da placa, mas o semáforo abriu e ela arrancou rápido, cantando pneu. Tudo que eu consegui guardar foram as letras, MEG. Parecia nome de gente. O nome daquela atriz que a Marina dizia que achava uma fofa, das comédias românticas de sexta à noite, de antes de ela arranjar um namorado. Aquilo era um sinal. Só podia ser isso. Era sinal de que eu iria receber a minha carteirinha de maluca. 

Prendi o cabelo como deu, mas o vento ainda estava tão forte que não tinha como fazer um rabo-de-cavalo decente. Uns fios escapavam e ficavam voando em volta do meu rosto. Se eu abrisse a boca para respirar, comeria cabelo. Era uma das coisas que eu não gostava naquela cidade. Ela não conseguia decidir. Ou era quente de rachar, ou tinha aquele vento gelado que parecia que iria levar a minha roupa embora. 

Já havia escutado várias histórias, lendas urbanas, de coisas que o vento havia feito. Tipo a da mulher que estava esperando o ônibus e a lufada fez com que ela fosse parar na rua, na frente de um caminhão PAM! Atropelada. Algumas vezes eu acreditava que essa história poderia ser verdade, especialmente quando achava que eu mesma iria ser levada embora. Talvez eu fosse para Oz, igual à Dorothy do filme. 

Peguei o ônibus lotado no terminal. Era uma sensação bem próxima de ser uma sardinha. Exceto que sardinhas não têm cheiro de suor e não ficam tentando se apalpar na latinha. As pessoas mais espertas estavam sempre com fones de ouvido no ônibus. Eu havia desistido de comprar qualquer tipo de eletrônico. Eu sempre dava um jeito de perder, na rua ou em casa. No final das contas, era muito caro ser avoada. Era mais barato ficar ouvindo as pessoas conversando alto sobre coisas idiotas que não me diziam respeito. Eu quase tinha vontade de me intrometer algumas vezes. 

Fiquei olhando para fora, tentando me segurar da melhor forma possível, já que o motorista parecia ser um piloto de Fórmula 1 aposentado. Vi uma mulher fazer o sinal da cruz enquanto o ônibus passava por cima da ponte. Era exatamente como eu me sentia, como se estivesse entregando a minha alma, mas eu já estava habituada com a sensação. 

Quando saí, o ônibus já havia esvaziado. Desci um ponto antes, para ficar na frente da locadora. O balconista me conhecia desde a época que eu ainda fingia ser uma boa garota. Ele me chamava de Amélie, por causa da Amélie Poulain do filme[1]. Naquela época eu tinha cortado o meu cabelo curto e tinha ficado parecido com o da personagem. O cabelo já havia crescido tinha muito tempo, mas o rapaz continuava me chamando daquele jeito. Acho que ele deveria gostar do filme, ou qualquer coisa assim. 

— Amélie, eu consegui o filme que você queria! — o balconista disse, ao me ver. 

Ele era um tipo desengonçado, meio alto, magrelo e ruivo. A Marina antigamente achava que ele tinha alguma coisa por mim e eu achava que ela tinha razão. Não que ele não fosse atencioso com todos os clientes, mas ele sempre parecia excessivamente feliz quando me via. 

Ele tirou a caixa de debaixo do balcão, como se fosse alguma coisa proibida. Se fosse alguma coisa ilegal, ele não poderia fazer mais segredo. Uma mulher gorda, que estava parada na frente da prateleira dos lançamentos, deu uma olhada atravessada. Pela cara dela, deveria estar achando que era um filme pornô. Deveria ser uma daquelas carolas religiosas, que passam os dias na igreja e de noite transam com a luz apagada. 

O filme não tinha nada de pecaminoso. Era só um filme velho que eu já tinha visto algumas vezes. Gente como a Gente, era o filme. Se a velha visse o “como” do título escrito na capa, iria provavelmente achar que ele queria dizer outra coisa. Quando uma pessoa tem a mente suja, tem a mente suja. Iria acabar lendo “Gente come Gente”, um pornô sem escrúpulos, ou um filme estranho sobre canibalismo. 

— Tive que mandar vir da filial — ele continuou, alheio aos meus pensamentos. 

— Obrigada, você é um anjo — agradeci, mas não conseguia lembrar o nome dele. 

Era Ilson? Wilson? Nilson? 

Tirei o dinheiro do bolso para pagar a locação, mas ele segurou a minha mão. 

— Por conta da casa, Amélie — falou e demorou um pouco mais para soltar minha mão do que precisava. Não que ele precisasse ter segurado em primeiro lugar. 

A cara da velha era de quem iria dizer “pouca vergonha”, ou qualquer coisa do gênero. Era bem aquele tipo de gente que não pode ver ninguém segurando a mão de outra pessoa sem ter segundas intenções. Ele tinha segundas intenções, claro. Quando é que homem não tem segundas, terceiras, quartas intenções? Pergunte ao Pedro. 

— Valeu, — congelei, como é que era mesmo o nome dele? Ortelino Troca-Letras? — Otis. Obrigada. 

Era a única pessoa no mundo que deveria se chamar Otis. Esse era o tipo de nome de pessoas que já nasceram velhas. Eu não conseguia imaginar uma criança chamada Otis. Quem era o pai que dava para o filho nome de elevador? 

Peguei o filme e guardei na bolsa. É claro que tratei de me mandar dali antes que ele inventasse que tinha direito de me convidar para qualquer coisa idiota e eu me sentisse na obrigação de aceitar porque ele havia me dado uma locação. 

Saí para a rua escura. Tinha noites em que a iluminação pública parecia não ser o bastante para iluminar tudo que deveria ser iluminado. Por sorte, eu estava apenas a duas quadras de casa. 

O vento mexia as folhas das árvores, fazendo as sombras dançarem. Quando as sombras mexiam daquele jeito, davam a impressão de que algumas coisas eram maiores. Já estava quase em casa, quando um cachorro fuçando no lixo me fez dar um pulo. Dei dois passos antes de perceber que não era um cachorro, mas um rato. Pelo tamanho deveria ser um rato mutante. Só deveria comer frango cheio de hormônio. Ou, talvez, fosse uma experiência genética que não tinha dado certo. 

Subi a escadinha da frente de casa correndo. Minha mão tremeu tanto que quase não consegui colocar a chave na fechadura. Pareceu uma eternidade antes que eu conseguisse entrar e fechar o rato-mutante-alienígena para fora, ou para qualquer mundo de onde ele houvesse vindo. 

Fiquei com as costas grudadas na porta por alguns segundos, só me mexendo para acender a luz do lado da porta. Nessas horas eu odiava chegar a uma casa vazia. Não havia ninguém que eu pudesse chamar para me socorrer de ratos, baratas e coisas nojentas. O Pedro só chegava pela meia noite, isso quando ele não parava em um bar e me chamavam para buscar ele de madrugada. Minha mãe era quem fazia isso, quando ela estava viva. Mais uma das heranças que ela tinha deixado para mim. Isso e um peito chato. 

Quando decidi que o rato não iria arrombar a porta atrás de mim, fui passeando pelo andar debaixo e acendendo as luzes. Tirei o filme da bolsa, antes de jogá-la no sofá da sala, e coloquei-o no aparelho. Deixei-o rodando enquanto ia para a cozinha esquentar as sobras do almoço no microondas. 

Eu alugava muitos filmes, mas não era tanto para assistir. Eu precisava de barulho em casa. Era algo parecido com o que eu fazia acendendo as luzes. Era para não sentir o silêncio e o fato de a casa estar vazia. 

O macarrão esquentado no microondas não esquentava por igual. Uma garfada parecia tremendamente quente e a outra fria de geladeira. Comi o macarrão frio-quente enquanto passeava pela sala. Acabei encostando-me no sofá debaixo da janela que dava para a rua. As aulas do colégio noturno ali perto deveriam ter terminado mais cedo. Havia vários grupinhos passando e falando alto. Uns rapazes estouravam bombinhas para assustar as meninas. 

Sorri, vendo uma das garotas pular como uma desesperada. Quase achei que ela houvesse visto o rato gigante. Se a saia dela não fosse tão justa, talvez tivesse levantado naquela hora. Talvez fosse exatamente isso que o rapaz quisesse. A menina tentou dar uns tapas fingidos no rapaz, que estava quase se contorcendo de tanto rir. 

Como eu estava olhando na direção deles, percebi quando passaram por algo que estava meio que escondido na sombra. Quase parecia um fantasma, um vulto no escuro. Primeiro achei que era um parente do ‘rato-mutante-do-espaço-sideral”. Quase dava para imaginar os olhos brilhando no escuro. Depois, percebi que era mesmo um homem. A garotada passou por ele sem dar uma olhada. Talvez fosse mesmo um fantasma, alguém que não existisse de verdade ali, fruto da minha imaginação. 

Só que ele saiu do lugar. Mancou e entrou em uma caminhonete que estava estacionada bem ali. Se eu conseguisse ver a placa, tinha certeza de que ela leria MEG. 

Era oficial. Eu tinha um perseguidor. 
Gostou? Então venha prestigiar a autora e adquirir em primeira mão o livro na Bienal:

JR estande 78 - JR78
dia 17 às 16:00 hrs
Editora MODO Tradicional 


Merry Meet!
Roxane Norris

4 comentários:

Anônimo disse...

A Modo vem trazendo tantas obras novas, esse livro parece ser interessante, a Renata bem que poderia aparecer aqui pra falar com a gente :)

Renata disse...

Opa! Eu não tinha visto a publicação! Obrigada!

Renata disse...

Ah! Só um adendo! Eu vou estar na Bienal no dia 17, às 16:00 para a sessão de autógrafos. Bjs!

Roxane Norris disse...

Ela apareceu!! Oi, Rê,vamos nos conhecer!Vou consertar o dia!
Beijokas

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